Para dar luz à milonga É preciso decompor-se Polir o espelho da alma Ferir-se no fio da foice Quebrar o vidro dos sonhos Ouvir o canto das mágoas Vazar cacimba nos olhos E se afogar nestas águas Pois compor uma milonga É recompor o silêncio Despir-se além das rimas Para se pôr ao avesso Chegar ao final de si E retornar ao começo Como se os dedos das mãos Fossem mistérios de um terço No parto de uma milonga Há mais do que nascimento A alma se evade em sons E o verso torna-se vento Pra traduzir a milonga É preciso que se entenda A poesia do fogo Nas línguas das labaredas Conhecer os elementos Os desvarios das coivaras Pro verso brotar da dor No braço de uma guitarra Pra viver uma milonga Há que depor-se a razão E dar vazão às palavras Que gritam no coração Sangrar no fio do horizonte A noite que dóI nos calos Rompendo a barra do dia Com bem-te-vis e cavalos No parto de uma milonga Há mais do que nascimento A alma se evade em sons E o verso torna-se vento